segunda-feira, novembro 23

Obcecada por Clarisse

    Tudo começou há três anos e meio, numa noite fria e chuvosa, típica de inverno.
    Estava eu em mais uma das minhas aulas de dança contemporânea na academia da rua Est, há duas quadras da minha casa, quando a professora, aquela bela professora, caiu desmaiada em meus braços. Paralizei. O que deveria fazer diante de tal situação? Que faria eu com o corpo de tão doce professora em meu domínio?
    A tensão pairou no ar, mas logo o grito das outras alunas tomou conta da sala. Não conseguia afastar aquele misto de angústia e alvoroço que tomava conta de mim. Tudo foi passando de um colorido confuso para um preto distinto. E antes de tudo sumir do meu campo de visão e de eu perder minhas propriedades auditivas, só o que consegui ouvir foram as vozes das garotas que outrora enchiam a sala com seus gritos, perguntando-me se estava bem. Porém delas só via vultos e sojmbras.
    Acordei dez minutos depois, deitada num daqueles bancos nada confortáveis da academia, com meia dúzia de pessoas me rodeando e olhando fixamente para mim.
    De início, não consegui lembra o que havia acontecido. Alguns minutos depois, porém, uma das garotas que me rodeava balbuciou para a sua amiga algo como "... será que devemos contar sobre a professora? Será que ela se lembra de tudo?" e logo tudo ocorreu à minha mente. A Adriana havia desmaiado bem diante de mim, alguns minutos antes, mais precisamente nos meus braços.
    A dor e o receio que se instalaram em mim eram maiores do que a coragem de saber o que acontecera com Adriana.
    De um salto, levantei-me do banco pouco aconchegante e corri até em casa de forma tão veemente que em dois minutos teria chegado, se não fosse pela rápida parada que fiz em certo bar no caminho. E fiz bem. Sóbria seria impossível ouvir o que ouvira naquela noite ao chegar em casa.
    Foi difícil aceitar o fim de Adriana. Morte súbita por parada cardíaca causada pela liberação de adrenalina durante a prática de atividade física, associada ao uso indevido de drogas ilícitas. Levando-se em conta os vinte e três anos que ela tinha, não puide acreditar que os choques elétricos não a trouxeram de volta ao mundo.
    Tudo o que sabioa sobre a ivina arte de dançar me fora ensinado em dez anos pela Adriana. Ela era uma mulher incrível, uma professora excelente. Por que havia de morrer bem no auge da sua vida? Por que me deixou assim, de uam hora para outra sem um mero adeus? E, por que tantas drogas, se tudo parecia tão correto em sua vida? Mas a pergunta que não me calou foi, de fato, quem poderia substituí-la?
    A vizinha, sim, aquela infeliz teve o desprazer de tomar o lugar da minha querida ex-professora de dança. Mas só o descobri por volta de duas semanas depois da morte de Adriana; precisei desse tempo para chorar as lágrimas de uma vida e para me recompor de tamanha perda e dor.
    Aquela desgraçada não podia ter vindo em hora pior; a pessoa que eu mais odiava em todo o mundo tomara o lugar da que eu mais amava. Por que Deus, em toda a sua benevolência, havia de reservar tamanhos ódios, raiva e ira justo para mim? Foi então que cheguei a uma sensata conclusão: ele simplesmente não existia, mas sim aquele, possuidor de muitos nomes, mas precisamente seis, sim seis, seis foi o que eu disse: Diabo, Satanás, Lúcifer, Demônio, Cão e Belzebu. Apeguei-me ao terceiro dos nomes, e foi para ele que passei a rezar todas as noites.
    Nos primeiro dias de aula, eu odiava plenamente aquela mulher, minha repugnante vizinha, a quem passei a chamar pelo nome de Clarisse. Ela também parecia me odiar... As aulas com ela eram terríveis, piores do que eu acreditava que podiam ser. Por isso, aquela rápida parada naquele tal barzinho no caminho de casa virou rotineira.
    Certa noite, quando fomos a um teatro com a academia, a Clarisse resolveu pedir desculpas pela forma rude como tratava suas alunas na aula, mas só o fez a mim. Foi então que me dei conta de que era a primeira vez que nos falávamos sem usar daquela ligação professora-aluna. Estranho, sei, mas essa é a verdade.
    Na ocasião, eu apenas a esperei terminar de falar e saí, sem dizer-lhe palavra alguma e sem deixar que a minha surpresa sobre tal atitudetransparecesse. Pensei bastante sobre o ocorrido.
    Aquela odiosa mulherpassou a cumprimentar-me repetidamente pelo resto da noite, memso sendo a minha resposta também repetida.
    Mulher persistente aquela, a minha ex-repugnante vizinha, atual professora de dança contemporânea. Eis que tentou tanto falar comigo que conseguiu. No final da noite, ela veio tentar , mais uma vez, cumprimentar-me; acabei por responder, colocando um belo sorriso em seu rosto. Não entendi, realmente não entendi; não nos odiávamos um segundo atrás? Por que então ela passou a gostar de mim? E por que eu estava começando a perceber que também gostava dela?
    Nos meses qe se seguiram, comecei a sentir algo estranho pela Clarisse, o problema é que era bom, terrivelmente bom. Eu não devia odiá-la? Há algum tempo ela era minha megera vizinha, pessoa que eu mais odiava na vida, e havia tomado o lugar da pesoa que eu mais amava, transformou as aulas que eu mais gostava na vida em momentos de ira e rancor ( e vale ressaltar que só continuei com as aulas em respeito à Adriana) e ainda fez de mim uma alcoolatra.
    Ok, não chega a tanto, mas se as coisas continuassem daquele jeito por mais algum tempo, era bem provável que eu virasse memso uma alcoolatra. Por que então, começava a sentir algo tão bom por aquela mulher? Por que começei a vigiá-la pela janela da minha casa e controlar seus horários?
    "A vizinha sai de casa todos os dias às cinco horas da tarde." Foi o que detectei com a vigilância. Passei então a sair de casa uns dez minutos antes para poder admirá-la ao chegar na academia.
    Custou para eu descobrir que aquele sentimento pela Clarisse era amor. Bem, na verdade saber eu já sabia, só não aceitava.
    Me parecia que ela também sentia algo diferente por mim, via pela forma que ela me olhava, que me tratava e que falava comigo.
    Logo percebi que estava ficado obcecada por ela, tão obcecada que passei a escrever uam espécie de diário sobre tudo o que acontecia entre a gente.

    Vinte e cinco de maio, quinta feira.
    Não sei o que deu nela; do nada ela reslve ficar assim, sem falar comigo. Odeio isso, de verdade.
    Hoje, ao invés de falar comigo, ela ficou indo atrás de mim, queria ficar perto de mim o tempo todo. Houve um momento em que eu estava parada perto da porta depois da aula e ela me abraçou por trás. Não sei o que ela queria com isso, mas eu estava muito chateada com ela hoje, já que ela não estava falando comigo, então saí da sala e fui beber um copo de água. Ela ficou meio sem graça. Um pouco depois, olhei para ela, por acaso, e ela estava ohando para mim. Ficamos nos olhando por algum tempo, o suficiente para eu decifrar o seu olhar, este que dizia, claramente: "por que você não vem falar comigo? Estou com saudades". Mas eu não fui.


    Trinta de maio, terça.
    Hoje a Clarisse não parou de falar comigo. Não saiu do meu pé. Ela chegou na academia muito feliz, queria saber o por quê.
    Ela é meio estranha; aula passada nao dirigiu uma só palavra a mim e hoje está aqui, perguntando sobre minha vida e família.


    Três de junho, domingo.
    Eu não costumo falar com a Clarisse fora da academia. Apesar de eu ser a sua vizinha, de saber dos seus horários e afazeres, são poucas as vezes que, de fato, a encontro na rua ou em qualquer outro lugar. Vezes estas em que o meu coração pára, começa a bater bem forte, uma estranha sensação toma conta do me corpo e, por fim, deixo que uma felicidade mórbida se instale.
    Às vezes tento 'provocar encontros'; vou para lugares onde sei  que ela irá, mas raramente isso dá certo, mesmo diante de tantas facilidades citadas anteriormente.
    Hoje, estaa eu no msn, quando vi que ela havia me adicionado. Fiquei surpresa; foram poucas as vezes que ela falara comigo no seu msn antigo. POr vezes, tive a sensação de que ela nao gostava de mim.
   Já houve tempos em que fiquei tão iritada por ela não responder às minhas perguntas, que parei de falar com ela. Por algum motivo ela também parou de falar comigo.
    Certa vez fiquei tão brava com essa atitude da Clarisse que resolvi enviar-lhe vários smiles zangados. Ela, ainda assim, não respondeu. Passamos porém, um tempo sem nos falar. Coisa que voltamos a fazer certo dia no teatro. Uma atitude semelhante à primeira vez que nos falamos.
    Descobri que, de todas as alunas, eu era a única que a Clarisse adiciornara em seu novo msn. E esse foi um dos motivos pelos quais permiti que uma felicidade se misturasse à minha surpresa pelo fato de a Clarisse me ter adicionado. E tomei tal atitude dela como uma prova de amor.


    Seis de junho, segunda-feira.
    Hoje fomos fazer uma apresentação no teatro. Apresentaríamos quatro coreografias, sendo que eu fazia parte de uma e Clarisse de outra. Passamos toda a tarde ensaiando no palco do teatro, já que a apresentação seria de noite
    Todas as vezes em que ela estava no palco ensaiando, se preocupava em olhar se eu a estava olhando. Quando era eu quem ensaiava, ela não permitia que as outras garotas ficassem na minha fente. Mas eu não a olhei em momento algum, ó de 'rabo-de-olho', como ela costuma dizer.
    À noite, na hora da apresentação, fiquei na conhia com algumas meninas para assistir às coreografias. É bem verdade que só o que me importava mesmo era ver a Clarisse dançar, mas não contei isso a ninguém, afinal, qual seria a reação das minhas amigas se soubessem que eu estava apaixonada por uma mulher? Ou pior, que era OBCECADA POR CLARISSE? Preferi não contar, guardar só pra mim.
    Eu não achava nada daquilo estranho. Como poderia acharo amor estranho? E, afinal, o que é a opção sexual diante do amor? Dizem tato por aí que o amor é maior que tudo, que move montanhas... Por que então. as mesmas pessoas que o dizem, não aceitam o fato de existirem outras opções sexuais, e não só a deles? Tamanha ignorância!
    Enfim, na hora em que estava na cochia, percebi que ela também estava lá, na cochia à minha frente, olhando fixamente para mim. Também o fiz.
    Antes do início do espetáculo, ao invés de ela permanecer no camarim destinado a ela, alojou-se no meu e passou a noite me perguntando do meu namorado ou garotos de quem eu gostava. Não respondi. Preferi deixar a dúvida pairar sobre o ar.

    Nove de junho, quinta.
    Só se passaram três dias depois da última apresentação e já estamos provando o figurino para uma apresentação futura.
    Após certo tempo de aula, eu e as outras alunas fomos, de uma a uma, sendo chamadas para tal prova. Fui a última. A Clarisse observou, de uma distância consideravelmente grande, eu colocar a roupa e ir falar com a costureira. Esta que, assim como eu, aprovou o figurino. A Clarisse, porém, veio ao nosso encontro e disse à costureira que a calça estava um pouco grande e que eu poderia cair, pedindo-lhe que a diminuísse alguns centímetros. Seu tom de voz era de grande preocupação.
    Ao final das prova, ela veio perguntar-me sobre o figurino das outras alunas.

    Catorze de junho, terça.
    Hoje saímos da aula meia hora antes do seu término para assistirmos à gravação da apresentação que havíamos feito uns dias antes.
    A televisão perto da recepção revela a belezadas coreografias para um bando de meninas muito atentas, de forma que havia apenas dois lugares de onde eu poderia avistar aquela reluzentetelevisão com clareza: perto da pilastra ou atrás das cadeiras das meninas. Acomodei-me no primeiro dos lugares; Clarisse sempre escohia tal lugar e eu tinha esperanças de que ea aparecesse por lá.
    Não demorou muito para ela chegar e se encostar em mim. Estávamos tão próximas e coladas que, se eu virasse o meu rosto alguns centímetros, a beijaria.


    Dezesseis de junho, quinta-feira.
    Hoje eu estava com o pé doendom então fiquei apenas assistindo à aula. A Clarisse não parava de me olhar enquanto dançava. Terminada a aula, ela foi assistir a certa coreografia, quando pelo menos quatro garotas pediram para que ela parasse de adiantar a fita, então eu disse para ela continuar adiantando sim. Ela ficou um pouco confusa e sem graça, mas fez o que eu pedi.


    Cinco de julho, teça.
    Hoje foi o primeiro dia de aula após as férias. Eu e Clarisse não nos falamos, mas passamos um bom tempo nos olhando fixamente.
    Eu estava morreno de saudades dela. Não sei como não morri nas férias. Se ela não fosse minha vizinha eu teria morrido, tenho certeza.


    Sete de julho, quinta.
    Hoje foi um dia muito longo e cansativo, porém foi também o dia em que eu cheguei mais perto de beijar a Clarisse.
    Ensaiamos o dia inteiro para certa apresentação que estava por vir.
    As primeiras cinco horas de ensaio foram na sede da academia, depois pegamos um ônibus e fomos para o teatro para continuar o ensaio.
    Na academia, ela não siu de perto de mim nem por um segundo. Não parou de me olhar também. E o fez tão indiscretamente que as meninas começaram a comentar. Ela também falou apenas comigo hoje. Eu estava muito feliz com tudo isso e comecei a olhar e falar só com ela também. Não me importei com o que as garotas falavam; eu estava obcecada por aquela mulher e tudo o que eu queria era tê-la.
   A Clarisse estava definitivamente estranha hoje, possuía um ar de determinação no rosto. Ela nunca tinha sido tão indisceta e aberta em relação a nós.
    Começou a dançar na minha frente, começou a me tocar, a me abraçar. Sempre que eu estava falando com outra pessoa ela dava um jeito de afastar a pessoa de mim. Mandava eu dançar e ficava na minha frente, me olhando.
   Ao final da aula, faltando meia hora para o ônibus chegar, a Clarisse levou-me a uma sala perto da diretoria e pediu que a deixasse fazer masagem em mim. Ela era realmene boa nisso, fazia um curso de massagem e, às vezes, reservava um tempo da aula para fazer massagem em todas as alunas.
    No ônibus, sentou-se no banco em minha frente e ficou de joelhos, voltada para mim. Conversamos boa parte do caminho, eu, ela e mais duas amigas minhas. Ela continuou com o olhar pairado em mim.
    Pouco antes de chegarmos ao teatro, eu estava sentada com o rosto bem perto do banco dela. Ela estava virada de frente para mim, ainda de joelhos no banco à minha frente quando, de repente, abaixou de vez o banco, fazendo com que os nossos rostos ficassem a uma distância de, aproximadamente, uns quato centímetros. Se as meninas não estivesem alí, com certeza a teria beijado, porém, diante da situação, preferi não fazê-lo.
    Clarisse até ia fazê-lo, mas por causa das meninas eu me esquivei para trás quando a vi se aproximando. As meninas perceberam; podia ser visto, sem nenhum esforço, na cara de espanto delas. Preferimos não falar sobre o assunto.
    Ao chegar no teatro, uma surpresa: meu pai.
    Eu amava muito o papai, ele era uma das pessoas por quem eu daria a minha vida, mas não a da Clarisse.
    O papai trabalhava na polícia, era um excelente policial e tinha uma mira incrível com armas. Saíra da polícia há alguns anos pelo fato de ser impulsivo e impaciente, matando muitas pessoas inocentes, apenas por raiva ou até por ser mais prático do que os outros procedimentos que deveria tomar. Mas papai sempre fora dedicado ao trabalho e cumprira com todas as suas obrigações. Com ele eu me sentia mais segura, mais forte, mais alegre.
    Papai atualmente era aposentado. Ainda não deixara todos os costumes da polícia e andava com uma arma carregada no bolso esquerdo da calça parda. Eu amava papai.
    De certo, não fazia idéia do que papai poderia estar fazendo ali, mas fui correndo ao seu encontro e lhe dei um grande abraço. Ele não retribuiu. Estava estranho, pálido, suando e com uma expressão no rosto que não consegui definir.
    A Clarisse, ao vê-lo, disfarçou todos os olhares que vinha me dando desde a academia. Agiu de forma que, para quem olhasse, éramos só professora e aluna. Não falou com o meu pai.
    Após ter falado com o meu pai, me juntei a minhas minha amigas  perto do palco. Cinco minutos depois eu não via mais papai, também não via a Clarisse. Fui beber água perto dos camarins. Cheguei a tempo para ver a bala da arma de ouro de papai perfurar o peito esquerdo da Clarisse, Porém já tarde para salvá-la de tão desmerecido fim.
    Não pensei duas vezes, e logo havia dois corpos igualmente perfurados no peito esquerdo jogados no chão.
    Eu não queria machucar papai, mas ele machucou a Clarisse...



[14-18/5/2007]

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